Os modos com que artistas e teóricos se unem em torno de projetos que têm como horizonte a atuação coletiva e a autogestão1 envolvem contextos diversos e finalidades variadas. Mas, a depender do perfil de cada grupo, parece quase sempre haver uma mesma tentativa em comum: a de se criar espaços de atuação alternativos aos ditados pelas relações hierárquicas estabelecidas entre agentes e instituições dentro e fora do campo da arte e pelas lógicas que conformam o funcionamento do sistema artístico.2

Sabe-se que há as iniciativas coletivas que não buscam mais do que servir de ferramenta de inserção para aqueles que intencionam ingressar no chamado mainstream da arte contemporânea, e não faltariam exemplos dos interessados apenas em serem percebidos para fazerem essa passagem. Contudo, existem as iniciativas coletivas resistentes que oferecem posicionamentos críticos em relação às consagradas instâncias de produção, circulação e legitimação.3São grupos que atuam de forma propositiva agenciando modelos de criação, colaboração e difusão desviantes do circuito hegemônico. Mais do que criar novos espaços e dinâmicas, encaram a necessidade de se conduzir por um permanente processo de (re)criação, valendo-se de estratégias que exploram a criatividade, a imaginação e a invenção.

Ou seja, ao mesmo tempo que as iniciativas coletivas e autogestionadas não encontram modelos fixos e duradouros aos quais possam se basear para garantir sua viabilidade e permanência – uma vez que estão submetidas, em maior ou menor grau, às flutuações da economia e às incertezas das políticas culturais do contexto onde atuam, como é o caso do Brasil em meio às instabilidades que pautam este 2016 –, essas proposições também precisam estar constantemente sendo colocadas em discussão e reavaliação, entendendo que novas rotas devem ser reconhecidas e percorridas a cada passo dado ou obstáculo surgido – algumas delas, inclusive, não vislumbradas de antemão.

Entre os inúmeros casos que poderíamos considerar, este brevíssimo texto procura tratar em específico de algumas experiências do Ateliê397. Atuante desde 2003 em São Paulo e sediada no bairro Vila Madalena, a iniciativa tem funcionado como um misto de ateliê e espaço expositivo. No conjunto de suas ações, que incluem exposições, cursos, residências e outros projetos multidisciplinares, o Ateliê397 tem contribuído para o debate sobre as funções e os lugares da arte na contemporaneidade, bem como às discussões sobre as alternativas de atuação frente ao grande circuito e o decorrente papel dos agentes culturais atuantes em espaços coletivos com autogestão. Em seu site, o Ateliê397 apresenta sua proposta:

CRIAR, FOMENTAR e DIVULGAR ações, obras e pensamentos artísticos experimentais no campo das artes plásticas. O Ateliê397 é um espaço de intervenção cultural no circuito das artes, que promove ações inovadoras e incentiva a formação de outros olhares para a produção contemporânea. É necessário abrir espaço para o dissenso, para obras e discursos que não se enquadram nas agendas das grandes instituições museológicas nem são promovidos pelo mercado. Ser o espaço para livre expressão de novos agentes (artistas, curadores, teóricos) é o objetivo central da programação do Ateliê397, que tem como marcas a DIVERSIDADE e o PLURALISMO sem abrir mão do rigor reflexivo e da atitude crítica. (Disponível em: http://atelie397.com/institucional. Acesso em: 29 jun. 2016).

Fica claro o viés experimental e de intervenção no circuito por parte do Ateliê397, buscando oferecer modelos alternativos como uma resposta crítica ao circuito e às tradicionais instituições. Um dos projetos que apontam com maior contundência nessa direção é o “Surpraise”, cuja ironia que já aparece no título também se projeta no questionamento que a ação estabelece em relação ao mercado e aos parâmetros de valoração da obra de arte como objeto vendável. A segunda edição, realizada em 8 de maio de 2012, foi divulgada com o seguinte anúncio: “Mais de 60 artistas, com obras a partir de R$ 200. Quem são? É surpresa!”. Esses mais de 60 artistas doaram trabalhos cujas vendas foram revertidas para a manutenção do espaço mantido pelo Ateliê397. O tensionamento em relação ao sistema se deu pelo modelo, um leilão feito às cegas: os trabalhos foram dispostos no espaço sem identificação, e as pessoas presentes tinham que dar lances sem saber quem eram os autores das obras expostas. Ocorre que estavam ali trabalhos de nomes de peso no mercado como Cildo Meireles misturados aos de jovens artistas. Desde a estreia, em 2010, já ocorreram pelo menos sete edições do leilão “Surpraise” seguindo o mesmo modelo. Paulo Pasta, Carmela Gross e Dudi Maia Rosa são outros artistas valorizados no mercado que participaram doando obras. A crítica de arte Thais Rivitti, que integra a equipe do Ateliê397 e atualmente responde pela direção, comenta que, ao questionar como se forma o valor do objeto artístico, o leilão “Surpraise” gerou alguns desânimos e reações por parte de galeristas e até mesmo de artistas.4

Mas não é apenas o papel de afrontar direta e ironicamente certo estado das coisas que o Ateliê397 tem tomado para si. Em sua gênese está a ideia de se estabelecer como um espaço de formação e proposição, um espaço que se ativa de modo coletivo e vivenciado. Pautado pela invenção coletiva, pela produção em colaboração, pela ênfase na troca de experiências e pela proposição de situações, o Ateliê397 toma a liberdade criativa como ferramenta de resistência à alienação da arte operada pelos ditames do mercado e das instituições. Esboça, assim, uma agenda política capaz de constituir territórios de atuação organizados de forma mais flexível e descentralizada. A intenção, segundo Thais, é “[...] colocar as questões (muitas vezes incômodas) que não são discutidas no mundo da arte, tentar construir dinâmicas diferentes de compra e venda, pensar a formação do artista e do crítico de modo mais prático e experimental [...]”.5

Nesse sentido, duas outras iniciativas mais recentes do Ateliê397 merecem também ser destacadas, ambas iniciadas em 2016. Uma delas é o programa “Estamos (muito) Abertos”, um híbrido de residência artística e ateliê aberto. Nesse projeto, os ateliês dos artistas selecionados por meio de convocatória pública recebem visitação de público e críticos e são ocupados por eventos e atividades.6A outra iniciativa é o “Clínica Geral”, que oferece um ambiente de acompanhamento de projetos destinado a artistas, curadores, escritores, pesquisadores e todos aqueles que querem discutir suas práticas artísticas no âmbito da arte contemporânea. As orientações ficam a cargo dos críticos de arte Thais Rivitti e Carlos Eduardo Riccioppo e dos artistas Jaime Lauriano e Raphael Escobar.7

No momento, o Ateliê397 está planejando a programação para 2017, lidando com impasses com os quais são confrontadas muitas das experiências de iniciativas coletivas autogestionadas: avançar com a estrutura relativamente mais amadora, mantendo uma gestão compartilhada e atuando por meio de programas e editais de incentivo público ou privado; ou profissionalizar-se no sentido de se encaminhar para uma operação semelhante a de um centro cultural ou até mesmo de uma galeria, passando assim a ter uma gestão mais institucionalizada e hierarquizada. Talvez o caminho a ser traçado não esteja em uma ou em outra posição, mas no que pode estar no meio, entre elas, tomando um pouco de cada uma. Posição que exige esforço e imaginação para algo que pode vir a ser. Thais Rivitti comenta que a discussão sobre a institucionalização não é recente no Ateliê397, mas que tem ganhado relevo pelas dificuldades naturais enfrentadas por aqueles que se mantêm atuando no que chama de “linha fina” entre uma gestão menos profissional e uma gestão mais eficiente aos moldes tradicionais das instituições.

Iniciativas coletivas autogestionadas como o Ateliê397 comprovam que, para se manterem sem ceder às contingências do circuito, é preciso avaliar permanentemente os rumos a serem tomados na elaboração de um modelo que permaneça sendo compartilhado e atendendo ao público para o qual se voltam. Trata-se de repensar constantemente possíveis modos de atuação adequados ao perfil de espaço coletivo com autogestão e que, ao mesmo tempo, colaborem para um sistema artístico mais saudável. E mais: de não perder de vista a missão de colaborar para a criação de espaços de atuação em que a produção artística e intelectual encontre possibilidades de experimentação e difusão não apenas alternativos, mas criticamente propositivos.

1  Apesar de a expressão “espaços independentes” ser usada no senso comum, o mais adequado seria entendê-los não exatamente como independentes, pois esses espaços quase sempre possuem algum grau de dependência em relação às políticas culturais vigentes. Nesse sentido, o termo “espaços independentes” deve ser problematizado, dando lugar a outros termos como "espaços autônomos de gestão", "gestão autônoma" ou “autogestão”. Neste texto, emprego os termos “autogestão” e “autogestionado” por considerar que, ao mesmo tempo que esses espaços não são totalmente independentes, também não o são totalmente autônomos em função dos vínculos com as políticas culturais e o modo com que, muitas vezes, precisam orientar seus programas e atividades conforme certos parâmetros colocados por editais, programas e leis de incentivo. Assim, “autogestão” e “autogestionado” me parecem mais adequados por darem conta do fato de esses espaços terem a sua própria gestão.

2  Sobre as relações que o campo artístico estabelece de forma porosa com outros campos, como o econômico, considero aqui o conceito de pós-autonomia nos termos de Canclini. Cf.: CANCLINI (2012).

3  Em sua pesquisa de mestrado sobre coletivos brasileiros, Fernanda Albuquerque aponta, entre outras questões, a postura de dualidade frente ao sistema. Cf.: ALBURQUERQUE (2006). E, em sua pesquisa de doutorado sobre coletivos na América Latina, Claudia Paim investiga, entre outras questões, ações críticas e posicionamentos políticos frente ao sistema. Cf.: PAIM (2009).

4  Para a elaboração do presente texto, por parte do autor, foram fundamentais os diálogos com Thais Rivitti sobre as ações do Ateliê397 estabelecidos por meio de conversas por Skype e trocas por e-mail.

5  Das conversas realizadas entre o autor e Thais Rivitti por meio de Skype e e-mails.

6  A iniciativa tem uma plataforma on-line. Disponível em: http://estamosmuitoabertos.tumblr.com/. Acesso em: 29 jun. 2016.

7  A iniciativa tem uma plataforma on-line. Disponível em: https://clinicaatelie397.wordpress.com/. Acesso em: 29 jun. 2016.

ALBURQUERQUE, Fernanda Carvalho de. Troca, soma de esforços, atitude crítica e proposição: uma reflexão sobre os coletivos de artistas no Brasil (1995 a 2005). 2006. 273f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br. Acesso em: 29 jun. 2016.

CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 2012.

PAIM, Claudia Teixeira. Coletivos e iniciativas coletivas: modos de fazer na América Latina Contemporânea). 2009. 294f. Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br. Acesso em: 29 jun. 2016.