Pollock e Tureen organizados pelo Senhor e pela Senhora Burton Tremaine, Connecticut é o título de um trabalho de Louise Lawler, datado de 1984, que consiste numa fotografia de um interior doméstico, onde vemos um fragmento de uma pintura de Jackson Pollock pendurada na parede, frente à qual está posicionada a peça de porcelana mencionada no título. Lawler é conhecida por conduzir a atenção do espectador na direção daqueles elementos que seriam, tradicionalmente, vistos como a periferia da obra de arte, os bastidores do trabalho. Trata-se de trazer para o centro do debate o quadro institucional que constitui certas condições de possibilidade para o fenômeno artístico.

Na medida em que a criação de valor na arte implica não apenas o trabalho dos artistas, mas a participação de um conjunto de agentes, Pollock e Tureen... aborda essa questão sublinhando certo protagonismo dos colecionadores ao incluir os seus nomes no título do trabalho. Na fotografia, a pintura e a porcelana aparecem como itens de uma coleção e, portanto, enquanto objetos inseridos na trama material do mundo, onde as relações sociais entre artistas, instituições, curadores, críticos, públicos, empresas, dispositivos publicitários constroem o reconhecimento de certos objetos como artísticos. O trabalho de Lawler nos coloca, assim, diante de uma pergunta de índole contextual: “Quando há arte?”, deslocando a questão essencialista “O que é arte?”. Se seguirmos as pistas que nos são oferecidas por Pollock e Tureen..., entre outros trabalhos interessados em discutir as condições materiais de existência da obra de arte, poderíamos argumentar que há arte quando estão satisfeitas certas relações sociais e econômicas.

No horizonte desses problemas, gostaria de situar o trabalho ROTAS: procedimento comércio que venho desenvolvendo desde 2011 e que consiste no processo de comercialização de outro trabalho de minha autoria, intitulado Desenho impossível. Esse, por sua vez, consiste na ação de cobrir com corretivo os nomes de todas as localidades que constam em cada uma das 46 cartas aeronáuticas, as quais circunscrevem o território brasileiro. Tais cartas, utilizadas por pilotos para navegação aérea, são comercializadas individualmente por mim, quando o nome do comprador passa a integrar o mapa mostruário, conforme respectiva anuência. Dos 46 Desenhos impossíveis, as cartas Belo Horizonte 3189 e Brasília 3140 são de propriedade da artista e, dessa maneira, não são comercializáveis. As cartas disponíveis para venda podem ser adquiridas através do contato com a artista1 que, dessa forma, assume como sua atribuição o processo de comercialização, pretendendo trazer para o centro do debate a materialidade de dinâmicas supostamente periféricas, ao compreendê-las como lugares de intervenção. Nesse sentido, trata-se de mobilizar um território que seria tradicionalmente visto como o lado de fora do trabalho, nos termos propostos por Brian Eno:

Onde você trabalha? Você trabalha “dentro” ou “fora”? Trabalhar dentro é lidar com as condições internas do trabalho – as melodias, os ritmos, as texturas, as letras, as imagens: todas as coisas normais e cotidianas que imaginamos que um artista faz. Trabalhar fora é lidar com o mundo que circunda o trabalho – os pensamentos, premissas, expectativas, lendas, histórias, estruturas econômicas, respostas críticas, questões legais e assim por diante. Você pode considerar que essas coisas são a moldura, o enquadramento do trabalho. Uma moldura é um jeito de criar um pequeno mundo ao redor de alguma coisa. Tradicionalmente esse mundinho não é muito levado em consideração – há quase que um sentimento de que investir muito tempo nessa parte é procurar as coisas no lugar errado. (ENO, 1996, p. 373-374, Tradução Antonio Marcos Pereira).2

Na medida em que propõe as condições externas do trabalho como eixo problemático, ROTAS enuncia sua intenção em procurar as coisas no “lugar errado”. Ao fazê-lo, o projeto pretende deslocar expectativas e hierarquias e entende essa procura como uma disposição para interrogar os lugares do trabalho de arte e as atribuições dos agentes envolvidos, dando continuidade a uma discussão longeva, cuja gênese remonta às manobras conceitualistas.

ROTAS: procedimento comércio integrou a exposição Táticas heterogêneas/aproximações entrópicas, realizada no contexto do Festival de Inverno da Universidade Federal de Ouro Preto, em 2012. Também foi anunciado na edição de número 22 da Revista Select, em fevereiro/março de 2015, como parte dos esforços em conferir visibilidade e legibilidade para o projeto, promovendo as condições de possibilidade para a realização de bons negócios. ROTAS: procedimento comércio pode ser visitado em www.cargocollective.com/rotas.

Ao fazer uso dos nomes dos compradores/colecionadores como parte do corpo do trabalho, o projeto lança mão de um artifício correlato àquele explorado em Pollock e Tureen... Dessa maneira, ROTAS não só pretende apontar para distintos endereçamentos, percursos de construção do valor do trabalho, como quer reunir um conjunto de nomes próprios que terá desenhado as relações sociais/comerciais possíveis: a Coleção da artista.


1  fabiolabh@gmail.com

2  “Where do you work? Do you work "inside" or "outside"? To work inside is to deal with the internal conditions of the work - the melodies, the rhythms, the textures, the lyrics, the images: all the normal day-to-day things one imagines an artist does. To work outside is to deal with the world surrounding the work - the thoughts, assumptions, expectations, legends, histories, economic structures, critical responses, legal issues and so on and on. You might think of these things as the frame of the work. A frame is a way of creating a little world round something. Traditionally that little world isn't given much thought - there's almost a feeling that to invest too much time in that part of the job is to be looking in the wrong place”. (ENO, 1996, p. 373-374).

ENO, Brian. On being an artist. In: A year with stollen appendices. London: Faber and Faber, 1996. p. 373-374.

CANCLINI, Nestor Garcia. Estética y ciências sociales: dudas convergentes. La sociedade sin relato. Antropologia y Estética de la Inminencia. Buenos Aires: Katz Editores, 2010.

CRIMP, Douglas. Sobre as Ruínas do Museu. Tradução Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

1  Fabíola Tasca, ROTAS: procedimento comércio (detalhe), desde 2011, mapa mostruário, arquivo jpeg, dimensões variáveis. Imagem: arquivo pessoal.

2  Fabíola Tasca, Desenho impossível, 2011, corretivo sobre carta aeronáutica WAC 3189 Belo Horizonte, 55 x 79 cm. Fotografia: Samuel Martins.

Capa | Fabíola Tasca, ROTAS: procedimento comércio (detalhe), desde 2011, fotografia, 10 x 15 cm. Imagem: arquivo pessoal.