– Vamos escrever juntos? – dizia a mensagem. Eu era o destinatário, mas apenas um dentre outros. Será preciso lançar mão de uma intimidade fugaz, pensei em voz alta. Um evento vincula. E nada mais. A promessa de um evento que reúna é tudo o que se tem: nosso Norte sem bússola. Delírio. Mas de outro ângulo, tudo me parecia girar sobre o eixo do pretexto. A disposição para abandonar a solidão do fazer-a-si-no-que-se-gosta-ao-seu-próprio-modo.

// Não é fácil falar numa semana como essa.
// Por que nós estamos aqui hoje?
// Para pensar a publicação.
// É importante debater.
// Por que publicar?
// A questão talvez não seja o porquê. Talvez seja o como.
// E como publicar?
// A nossa ideia de publicação é ativa, participativa, não passiva.
// A questão de tornar público um caderno ou uma publicação acaba se associando também à noção de espaço público, à noção de ocupação. Fazer essa conversa, esse encontro, é uma forma de pensar sobre isso. De pensar essas ocupações e esses compartilhamentos. Pensar a experimentação impressa e o estabelecimento de redes que ela possa permitir. Pensar sobre o que queremos falar e porque precisamos falar disso.
// A gente precisa falar sobre o que não se fala, sobre o que não tem voz.
// Precisa.
// O impresso pode guardar segredo, sabe? Como em meio à repressão: ele faz transitar ideias.
// É. É uma possibilidade comunicacional. É um mecanismo estratégico, relacional. É a vontade de fazer um diálogo verdadeiro. Não só entre nossos pares, mas entre vozes diversas.
// Se temos algo em comum, como a gente compartilha isso? Como pensar essas formas de diálogo e as pontes com os outros?
// Nem todo mundo quer se misturar. Às vezes, cada um quer formar o seu público a sua maneira e no seu território.
// Praticamente uma “guetificação”.
// “Guetificação”, gentrificação… A gente tem mesmo é que ocupar e se misturar.
// Eu me questiono sobre os locais de ocupação.
// Sim. Como furar o bloqueio? Temos que pensar caminhos.
// E a feira?
// Ah, esse espaço fechado, esse recorte curatorial, esses pré-requisitos. Poucas pessoas questionam isso. Parece que temos dificuldade em pensar para além desses espaços.
// É uma “institucionalização dos movimentos independentes”.
// Sim. É Interessante como esses espaços saem do eixo central de atuação, já institucionalizados, mas continuam dentro dele.
// É preciso gerar movimentos de descentralização.
// Como fazer para tornar mais democrático esse espaço de troca, esse espaço político de diálogo? Afinal, para quem a gente está dando espaço? Ah, “hoje em dia todo mundo pode publicar”. Isso é uma falsa ideia de inclusão.
// É que o circuito é sempre excludente. Bom mesmo deve ser uma feira livre!
// Vocês acham que as feiras existem para abrir espaços? Abertura de espaços é uma movimentação de resistência.
// Os espaços de circulação aumentam, mas, muitas vezes, são os mesmos com os mesmos e uns a mais.
// As feiras não estão aí para solucionar o problema da circulação e das editoras pequenas, mas estão aí para fomentar outros tipos de diálogos e conexões, para catalisar outras trocas e intercâmbios. Elas permitem repensar sobre a noção de parceria. São pontos de movimentações, catalisam ideias. Mas claro, são também um centro de poder e de visibilidade.
// O formato de feira é um tanto simbólico.
// Quais são as possibilidades de espaço de visibilidade que a gente ainda não pensou? Devem existir propostas para além das feiras e para além dos espaços de notório saber.
// Me interessa construir novos meios não institucionais.
// Quais?
// Não sei. Mover-se para provocar situações inesperadas. Ativar a mobilidade.
// A prática de estar na rua está nos chamando.
// A utopia do encontro.
// Esse encontro, esse ato de publicar… É isso que nos atrai.
// Essa liberdade, essa independência.
// Nós podemos ser independentes desses espaços. Independentes dessa lógica.
// Independente? Mas será que a gente é tão independente assim?
// Pelo menos a gente é independente para poder falar o que quiser.
// É. Talvez.
// Podemos criticar as prerrogativas, apontar para as dissemelhanças. Precisamos deixar de ser redundantes, avançar nessas questões.
// Temos que questionar nossos próprios privilégios.
// Não dá pra pensar na ideia do artista como uma massa amorfa.
// Precisamos falar de privilégios brancos, de espaços de poder. Precisamos falar de feminismos. Da ausência de espaços de empoderamento. Isso é estar na arte. Precisamos questionar esses aspectos. A arte não deve ser um lugar de conforto. Deve estar atenta ao seu próprio espaço.
// É mais provável que se encontre um livro sobre zapatismo em uma feira de arte impressa do que um trabalho ligado ao movimento negro – que é muito mais conectado ao nosso contexto, à nossa realidade. Isso não faz sentido.
// Debatemos pouco nossa história. Debatemos pouco nossa chaga da colonização.
// A descolonização pressupõe horizontalidade.
// Podemos buscar a horizontalidade.
// Temos que reconhecer nossos traumas. Reconhecer as diferenças, buscar combater tudo isso. Saber o que significa a diversidade e respeitá-la, trazê-la como parte constituinte. As ausências significam.
// O reconhecimento da ausência é importante. A lacuna, às vezes, fala mais do que a própria presença.
// É preciso construir a partir do conflito! O momento atual é o de fortalecer ações políticas, priorizar esses processos horizontais num âmbito reflexivo, propositivo, crítico e de formação de público. Devemos questionar o monopólio, as vendas, os vícios.
// A gente tem que saber trabalhar com esse conflito e com essa diversidade. É importante nós sabermos tratar a diferença. O conflito é necessário para viver e saber conviver. E isso tudo deve se tornar compartilhado, deve ser publicado.
// O encontro de publicadores deveria continuar. Talvez em próximas edições possamos ir além...
// Devia...
// Na verdade, a gente é uma farsa. Isso tudo é só um falatório, para gente poder fazer o que queremos fazer, o que estamos a fim de fazer mesmo. É uma desculpa. É tudo uma desculpa. Uma desculpa de liberdade, talvez. Somos bonecos infláveis, pensando o fazer e pensando nossa própria resistência.

Capa -  Vânia Medeiros, registro em desenhos do encontro de publicadores, nanquim sobre papel, 2016.