Criado na década de 1970 e, posteriormente, anexado aos departamentos investigativos do Instituto Allotria de Análises e Intervenções Antrópicas Investigativas (IAAIAI), o Gabinete de Coleta, Identificação e Significação de Espécies é idealizado e dirigido pela professora Ana Mucks. Nele, desenvolvem-se pesquisas tocantes à natureza e aos seus desvios, dos mais brandos aos mais severos. Em suas atividades, a pesquisadora gerencia dados coletados em campo, depurando-os na ordem de inspirar novas descobertas e concepções.

Profissional engajada em pesquisas com foco em fenômenos naturais das ilhas do delta do Rio Jacuí e seu entorno, recebe semanalmente lotes, em caixas devidamente identificadas, numeradas, datadas e destinadas, contendo materiais coletados por seus assistentes. Frequentemente, ela se ausenta de suas atividades laboratoriais a fim de estabelecer contato direto com seus objetos de estudo, observando-os in situ. Ao rastrear cadeias de relações entre fenômenos locais e o vínculo desses com eventos registrados rio acima, assim como as interferências provocadas pela expansão urbana e populacional da cidade de Porto Alegre, Mucks desenvolve hipóteses e firma evidências acerca de determinadas manifestações, significando-as.

As pesquisas atuais, por exemplo, monitoram o ciclo de vida de três espécies de besouros encontradas na Ilha do Pavão e na Ilha das Garças. Embora a professora Mucks não disponibilize informações e detalhes sobre as espécies e as hipóteses que vêm construindo em seu Gabinete, nos é possível traçar alguns aspectos a partir do material que se encontra disponível sobre sua mesa. É verdade que, se tivéssemos acesso aos dados reunidos dentro dos armários, teríamos melhores condições para estabelecer correspondências entre as informações. Questionada sobre as crescentes especulações sobre seu trabalho, a pesquisadora responde que a curiosidade e a rejeição ao que é novo e, eventualmente, estranho, são reações inerentes aos seres humanos; está, portanto, interessada nas reações decorrentes do terceiro espaço que se produz a partir das fissões e fusões dessas idiossincrasias. E complementa, não sem humor, que as criativas especulações alheias lhe fornecem alimento para sua própria inventividade.

O método de trabalho da pesquisadora se baseia na consolidação de elos entre fenômenos que podem, muitas vezes, ser de uma heterogeneidade espantosa. A qualidade criativa é, nesse processo, um elemento determinante, do qual pode depender o estabelecimento de uma nova descoberta ou o seu total ostracismo. É verdade que as possibilidades de vinculação entre objetos e fenômenos tendem, muitas vezes, ao infinito, por isso a precisão de julgamento é também essencial. Essa depende do grau de conhecimento e experiência do pesquisador.

Ana Mucks atenta para o fato de que as leis da Natureza são também regidas por qualidades criativas que se manifestam, por exemplo, em espécimes novos ou fenômenos aparentemente inexplicáveis. É evidente que tais eventos não são necessariamente novos em termos temporais. Podem ser inovações no que concerne ao espaço ou, simplesmente, fenômenos que ainda não haviam sido percebidos pela Ciência, por razões diversas. Entretanto, é notável como espécimes e fenômenos que têm por qualidades a raridade, a exoticidade, a aparente inexplicabilidade, muitas vezes desacreditados devido às suas particularidades, possam ser estopins para descobertas substanciais.

 

É especialmente sobre esses fenômenos que se debruçam os pesquisadores vinculados ao Instituto Allotria, em seus diferentes Gabinetes e Departamentos. Em suas pesquisas, não visam à catalogação de espécies e sua inserção em sistemas de ordenamento pré-estabelecidos, muito embora denominem novas espécies de acordo com os critérios propostos por Lineu (1707-1778), pai da taxonomia moderna. Se os novos espécimes fossem denominados segundo um sistema distinto, é provável que permanecessem apartados dos demais seres já identificados conforme o sistema convencionado. As atividades do Gabinete, por meio da coleta e da identificação, promovem a significação de espécies e fenômenos em vista de novas descobertas e concepções trazidas à luz através do que vive nas fronteiras, à sombra do exemplar.

É nesse sentido que, em uma publicação recente, a pesquisadora reporta-se à Charles Fort (1874-1932), bem como ao denominado pensamento “intermediarista” por esse desenvolvido em sua prática de colecionador de fenômenos anômalos, rejeitados pela Ciência. O Sr. Fort, como se sabe, foi um grande crítico do pensamento positivista e da tendência homogeneizante. Seus estudos englobavam assuntos concernentes à Astronomia, à Sociologia, à Psicologia, à Morfologia, à Química e ao Magnetismo. Muito além de uma coleção, investigava o enigma, o nó oculto, que reúne os mundos escondidos por detrás do mundo atual. “Devo dispersar-me no reconhecimento de uma gama de outros mundos” (FORT, 1978, p. 132), dizia em 1919, introduzindo, assim, na Ciência, a afirmação de que há algo a mais. Reclamava, por meio de seus estudos, o reconhecimento de estados intermediários, entre o sim e o não, o positivo e o negativo, o exato e o falso, o aberto e o fechado etc., referindo-se a eles por meio de adjetivos como real-irreal, imaterial-material, solúvel-insolúvel, em função da limitante estrutura binária da nossa linguagem.

Se pudermos, segundo esse raciocínio, compreender a realidade como equilíbrio e todos os fenômenos que a constituem como estados intermediários, isto é, como tentativas de harmonização, veremos que todas as coisas constituem etapas seriais entre a realidade e a irrealidade. Para o Sr. Fort, é isso o que define o pensamento “intermediarista”, segundo o qual qualquer fato pode servir ao fim de descrever a totalidade. Para ele, não há distinção de validade entre a repentina aparição de britânicos de cor púrpura, meteoros estacionários ou o súbito crescimento de cabelos sobre uma cabeça calva.

A professora Mucks e seus colaboradores são particularmente partidários desse viés científico. As práticas desenvolvidas em seu Gabinete, sob tutela do Instituto Allotria, não menosprezam manchas incomuns em folhas de árvores, desvios de padrão em liquens ou a ocorrência de besouros com cristas ósseas, por mais extraordinários que esses fenômenos aparentem ser. Afinal, o que importa não são os fatos, senão as relações entre eles.

 

FORT, Charles. O livro dos danados. São Paulo: Hemus, 1978.

1  Daiana Schröpel, Gabinete de Coleta, Identificação e Significação de Espécies, 2015, vistas da instalação, dimensões variáveis. Acervo da artista, registro de montagem: oitavo andar, Instituto de Artes/UFRGS, 06 a 31 de agosto de 2015.

2  Daiana Schröpel, Gabinete de Coleta, Identificação e Significação de Espécies, 2015, vistas da instalação, dimensões variáveis. Acervo da artista, registro de montagem: oitavo andar, Instituto de Artes/UFRGS, 06 a 31 de agosto de 2015.

3  Daiana Schröpel, Gabinete de Coleta, Identificação e Significação de Espécies, 2015, vistas da instalação, dimensões variáveis. Acervo da artista, registro de montagem: oitavo andar, Instituto de Artes/UFRGS, 06 a 31 de agosto de 2015.

4  Daiana Schröpel, Gabinete de Coleta, Identificação e Significação de Espécies, 2015, vistas da instalação, dimensões variáveis. Acervo da artista, registro de montagem: oitavo andar, Instituto de Artes/UFRGS, 06 a 31 de agosto de 2015.