A Deleuze, Gilles,

Irene, 31 de janeiro de algum ano

Prezado Deleuze,

Há tempo, eu me dizia: “é preciso escrever ao Deleuze; tenho que escrever ao Deleuze” e nunca encontrava o momento apropriado; somente agora que chego em Irene é que finalmente tenho paz e luminosidade suficientes para organizar as palavras desta conversa que há tempos já havia iniciado.

Sobre a cidade, poderia escrever linhas e páginas que nunca seriam o suficiente para descrevê-la. Resumo em dizer que Marco Polo tinha razão: Irene é uma cidade distante que muda à medida que se se aproxima dela.12

O amigo pode estar agora se perguntando do porquê da minha necessidade em escrever. Em primeiro lugar, porque pertenço (em alguns momentos, até me sinto aprisionado) a este mundo horizontal da ordenação das palavras escritas, onde cada frase e cada parágrafo ocupa seu posto estabelecido3. Por mais que eu aprecie alguns bons encontros presenciais, é somente aqui que consigo exercitar, ver e considerar novos pontos de observação do mundo. E aqui se inicia a minha provocação para nossa conversa: afinal, de que falam os escritores de literatura? E mais: por que se escreve literatura?

Que as pessoas escrevem por várias, inúmeras e diferentes razões acredito que concordamos. Outro dia, ouvi falar, de um jovem escritor, que o que o motiva a escrever é que os outros, todos nós (o mundo inteiro até! — frisou ele), saibam que tipo de vida nós vivemos e continuamos a viver. Será que isso é possível, considerando que cada leitor (re)escreve a obra lida? Agrada-me mais o que confessou Umberto Eco no seu ensaio "Pós-escrito a O Nome da Rosa": que escreve para “resolver um problema”.

Em uma das minhas propostas para este milênio, afirmei que podemos nos utilizar da escrita como forma de resolver, organizar a imagem, que surge primeiro, carregada de significados,4 mas já não tenho certeza que seja essa a essência, aquilo que move a mão do escritor. Talvez a potência da escrita esteja mesmo em formar, tecer redes de conexões entre os fatos, as pessoas e o mundo.5

Mas de que mundo estamos (estou) mesmo falando? Tudo hoje me parece tão desconexo, obscuro, sem produção de sentido, que a impressão que tenho é de que a tessitura narrativa de antes está se desfazendo. Diferente do manto de Penélope, que puxava o fio intencionalmente para retomar no dia seguinte, me parece que a pressa e a desconexão estão fazendo as palavras (e aqueles que delas se ocupam) se esconderem, como se as palavras colocassem as mãos presas para dentro dos bolsos e não fosse mais possível encadeá-las.

Olho as pessoas e seus movimentos agitados, na pressa em finalizar aquilo que mal foi iniciado, e me pergunto: ainda há lugar para o tempo, o ritmo e o ritual? Tempo para arrumar os óculos, organizar os papéis e livros em cima da mesa, apontar o lápis, virar a página, abrir lentamente a janela para acertar o ponto exato entre a entrada da luz e a barreira do som, ajustar a cadeira... Tempo para urdir a cor e a voz de cada palavra com outra e mais outra e mais tantas, deixando que algumas escapem e outras se reinventem.

Talvez tudo isso seja só saudosismo de um tempo que passou … ou uma questão de trocar as lentes através das quais estou vendo o mundo. E, se assim o for, tome esta carta como uma simples diversão proporcionada por este velho tolo e ultrapassado.

De qualquer forma, me alegrou esse tempo de parada para lhe escrever (fato que abriu em meu interior um novo tempo e espaço), e já antecipo minhas expectativas de receber o mais breve possível uma carta-resposta.

Despeço-me e agradeço com amizade. Um fraterno abraço.

IC



***

Ao nômade das cidades,

6 de fevereiro de uma imagem-tempo

Caro Italo,

Devo agradecer à sua intempestividade nômade e à cidade de Irene por suas bonitas palavras e seu desejo de escrita. Ao receber sua carta fiquei surpreso. Recebo constantemente correspondências, mas a sua me era inesperada. E eis que escrevo novamente a você, não para lhe importunar nem para solicitar uma resposta, mas na verdade | para continuar |, como que em surdina, uma conversa latente que as cartas não interrompem, ou então como um monólogo interior6 sobre algumas questões que colocou.

Você comenta comigo sobre essa necessidade da escrita. Posso dizer, e isso me anima, de que compartilho dela. Para mim, a escrita é um fluxo. Somos lançados a ela para tratar do entrelaçamento do pensamento e da vida. É nossa ordenação e nosso aprisionamento, como você diz. Sua questão me inquietou o pensamento, mas me anima a proposta que você lançou para que eu continuasse a conversação: “de que falam os escritores de literatura? E mais: por que se escreve literatura?”

Ficarei apenas nessa questão. E não lhe darei uma resposta. O que lhe escrevo são pensamentos soltos, um rascunho do pensar. Acredito que a escrita de cartas, assim como as entrevistas, nos permitem um exercício do pensamento. É difícil se explicar — uma entrevista, um diálogo, uma conversa. As questões são fabricadas, como outra coisa qualquer. O objetivo não é responder as questões, é sair delas.7 Dessa forma, desenho palavras na folha ao mesmo tempo que vou pensando nelas, quase um acontecimento.

Não entrarei em outras belas passagens de sua carta, como a de utilizar a escrita como forma de organizar a imagem, ou tecer redes de conexão. Apenas me permito dizer, quanto ao obscuro de nosso tempo, que acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos.8 Essa parada no tempo para escrever (ou até mesmo para pensar) é um desses pequenos acontecimentos.

Sobre por que se escreve e sobre a literatura: não sei se andou lendo minhas últimas palavras escritas, mas me dedico a essa questão em alguns textos que reúno no livro Crítica e Clínica. Escrever, como comentei acima, é um fluxo, é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se. A literatura tem a ver com o inacabamento também.

Lembro-me aqui de um de seus livros, Sr. Palomar. O que você fala nele? Fala do inacabamento, fala do entrelaçamento do pensamento e da vida, de uma decomposição do olhar, do pormenor do olhar, da dedicação de um tempo para olhar algo. Sr. Palomar é esse velho tolo e ultrapassado, como você diz de si mesmo. Solto uma gargalhada interna aqui. Nesse momento de escrita, associando as duas imagens — um cinema mental —, me dou conta do Sr. Italomar.

Escrever é fragmentar as linhas do pensamento e da vida, ou melhor, desmontá-las para depois realizar um procedimento de montagem dessas linhas, criando outros nexos, outras imagens do pensamento, outras imagens-tempo do vivido. Escrever é também devir outra coisa diferente de um escritor,9 e é aqui que lanço uma questão para continuarmos nessa conversação enquanto escritores: como pensar junto e escrever junto? E aproveito para acrescentar outra: como montamos nosso pensamento e nossa escrita?

Despeço-me, agradecendo por sua carta tão preciosa.

Creia-me profundamente seu amigo e perdoe-me por tão longa carta.

Gilles Deleuze



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De um intervalo de tempo

I.

Após enviar-lhe a carta, ocorreu-me um estilhaço sobre a montagem da escrita e do pensamento. Escrevo-lhe este breve comentário para acompanhar a escrita anterior, de um intervalo de tempo ou simplesmente do esquecimento das palavras.

Penso que vivemos em um mundo de composição e de jogo de forças onde somamos os estilhaços do vivido. O mundo no qual vivemos é um mundo de mesclas, as coisas estão sempre mescladas, tudo se mescla. Na experiência não há mais que... como diríamos? ... mistos. Existe mescla disso e daquilo.10 Não sei se consegue me entender.

Quanto lhe perguntava como escrever junto, como montar nosso pensamento e nossa escrita, queria tratar desses fragmentos, estilhaços que experienciamos e que, como diria nosso amigo Michel Foucault, nos permite certas condições de possibilidade. Para que a montagem do pensamento e da escrita aconteça — ou seja, um acontecimento e um devir —, é necessário que sejamos molhados por estilhaços dos mais diversos, dessas mesclas de coisas.

Falava sobre seu Palomar, sobre seu método de observação, e digo-lhe que a montagem do pensamento e da escrita não tem outro objetivo: o vento. Ou seja, a montagem do pensamento e da escrita é feita de agitação, de movimento, de correntes de ar fresco,11 de um pouco de ar que passa, dessa mistura de coisas vistas, olhadas, sentidas, escutadas, pensadas. Somos mesclas de mundos.

Um breve até logo,

Deleuze

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Carta de uma noite de inverno

Prezado Deleuze,

Hoje, mesmo não sendo Palomar, avisto o mar levemente encrespado e as pequenas ondas que vêm bater na costa arenosa12 do alto da cidade de Despina — lugar que escolho para registrar a conversa que há dias venho tendo silenciosamente com o amigo.

Por que tanta demora em escrever? Poderia alegar a falta de tempo devido aos cuidados com a filha pequena — que, por sinal, já desbrava sozinha os cantos e frestas da nossa casa — ou culpabilizar o excesso de trabalho ou blá-blá-blá-blá. Mas preciso dizer: não seria possível lhe enviar uma linha sequer antes de realizar uma primeira leitura dos textos reunidos em Crítica e Clínica. Ainda não posso afirmar com convicção de que gostei de tudo o que li. Isso porque você escreve sobre coisas de que eu não me sinto conhecedor. Mas me reconheço nelas. Você explica um mecanismo do qual eu não estou perfeitamente consciente, mas que reconheço como verdadeiro.13 Por exemplo, se alguém agora me perguntasse: “afinal, em que consiste o devir?”, eu explicaria a partir do lugar onde estou: uma cidade que se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar.14 Se for aos olhos do marinheiro, Despina toma a forma da corcunda do camelo que comanda a caravana, carregando odres e alforjes fartos. Se vista da terra, transforma-se em um veleiro, pronto para zarpar.

Perdoe-me a audácia em tão simples comparação, mas se assim lhe escrevo é para falar das únicas coisas que me sinto autorizado e apaixonado para lhe dar uma opinião crítica (autorizado porque apaixonado),15 ou seja, falar daquilo que observo no cotidiano e que me afeta. Não seria esse um dos pequenos acontecimentos do cotidiano, capaz de nos encantar, paralisar, para depois mover a escrita? Sobre o título, não me agrada. Eu o intitularia — meu parecer pessoal — Caminhos e Acontecimentos. Afinal, não trata a obra de tudo o que envolve e percorre o ato de escrever? Caminho nada fácil, digo eu, que sinto o texto nascer onde a caneta o encrava, onde não consegue se exprimir, dali e só dali poderá começar a fazer literatura. Todo o resto pode esquecer: onde a caneta corre fácil não nasce nada de bom.16

E, já que estamos na secção dos novos nomes, permita-me pausar para uma gargalhada conjunta: Italomar! Que grande honra, professor! Devo concordar que eu e Palomar temos em comum o gosto pelo silêncio, pela atenção àquelas coisas do cotidiano que não se costuma olhar. Obrigado por me trazer o velho homem para perto de mim. Ele me ensina um novo modo de olhar o mundo, de ser em meio ao mundo. No fundo, não é isto que toda a literatura nos ensina?

D., sua pergunta segue latente no meu peito: por que escrevo? Talvez em outra carta, em outro tempo ou cidade, eu lhe diga coisas diferentes. Por ora, o que posso afirmar é que escrevo para aprender algo que não sei, escrevo para fazer existir algo impossível, um saber que na vida, apenas tangenciei e logo perdi. E isto, meu caro amigo, só sou capaz de fazer pela página escrita.

Eu ainda quero lhe falar sobre outras tantas coisas e mundos, escritos e não escritos, sobre o romance dos tempos de hoje, sobre traduções, poemas e livros e autores. Mas tempos tempo, sempre. Neste momento, desejo retornar à leitura de seus ensaios, que me deram grande satisfação — como pode ver pela discussão passional que suscitou em mim —, e lhe sou imensamente agradecido.17

Seu

Italo Calvino

***

Montagem de uma vida

Caro I.,

Primeiro, desculpo-me por tão longo tempo entre minha última carta e seu adendo, entre o recebimento da sua resposta e essas curtas palavras. Não ando muito bem de saúde, o que me impede, muitas vezes, de realizar algumas escritas. Não gostaria de lhe deixar sem resposta, por isso estas breves palavras, para tratar de minha gratidão e amizade.

Generosa sua resposta sobre meus textos e interessante sua forma de definir o devir. Palavras de um poeta. Queria ainda retomar suas palavras sobre a escrita, quando diz que escreve sobre algo que não sabe e que essa escrita acontece página por página. Há tempos escrevi uma carta a Kuniichi Uno na qual falava que o certo é que não existe receita ou fórmula geral para trabalhar junto. E comentava do meu processo de escrita: que gosto de escrever sozinho, mas não gosto muito de falar, exceto nas aulas, quando a palavra é submetida à outra coisa.18

Mas o trabalho a dois ou com mais pessoas, seja uma escrita conjunta ou cheia de acontecimentos e mesclas, como lhe comentava em outra carta, não é uma uniformização, mas antes uma proliferação, uma acumulação de bifurcações, um rizoma.19 Comento isso para falar sobre o trabalho da montagem da escrita. Assim como não existe fórmula para se trabalhar junto, também não existe fórmula para se aprender a escrever. E esse sozinho é povoado de multidões. Nietzsche diz que sob os grandes acontecimentos ruidosos, há pequenos acontecimentos silenciosos, que são como a formação de novos mundos.20

A cada palavra lançada no papel, a cada página escrita, criam-se mundos. Restam-nos pequenos acontecimentos imperceptíveis, que talvez anunciem uma saída para fora do deserto (ou do mar) atual.21

Transmito-lhe reconhecimento e amizade,

Deleuze

1  Para manter a estrutura do discurso epistolar, os autores optaram por colocar em nota de rodapé as passagens de textos de Gilles Deleuze e Italo Calvino, destacadas aqui em itálico.

2  CALVINO, 2006, p. 52.

3  CALVINO, 2015, p. 105.

4  CALVINO, 1990, p. 17.

5  CALVINO, 1990, p. 125.

6  DELEUZE, 2016, p. 348.

7  DELEUZE, 1998, p. 9.

8  DELEUZE, 1992, p. 222.

9  DELEUZE, 1997, p. 11.

10  DELEUZE, 2009, p. 21.

11  DELEUZE, 1998, p. 89.

12  CALVINO, 1994, p. 5.

13  CALVINO, 1991.

14  CALVINO, 2006, p. 10.

15  CALVINO, 1991.

16  Idem

17  Ibidem

18  DELEUZE, 2016, p. 249-250.

19  DELEUZE, 2016, p. 250.

20  DELEUZE, 2006, p. 169.

21  Idem

CALVINO, Italo. Cidades Invisíveis. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2006.

______. I libri degli altri: Lettere 1947-1981. Torino: Einaudi, 1991. (Carta a Raffaello Brignetti, Roma, 29 de abril de 1953). In: DINIZ, Vitor Rodrigo. Calvino em cartas. (Monografia) — Curso de Letras Português-Italiano da Universidade Federal do Paraná. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/files/2015/02/calvino-em-cartas.pdf. Acesso em: 30 jan. 2017.

______. Mundo escrito e mundo não escrito. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2015.

______. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

______. Se um viajante numa noite de inverno. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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DELEUZE, Gilles. A Ilha deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.

______. Cine I: Bergson y las imágenes. Buenos Aires: Cactus, 2009.

______. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

______. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.

______. Dois Regimes de Loucos: textos e entrevistas (1975-1995). São Paulo: Editora 34, 2016.

______; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

Elisandro Rodrigues, Carta 1, 2017, fotografia PB, Porto Alegre

Elisandro Rodrigues, Carta 2, 2017, fotografia PB, Porto Alegre.