_N-1

“Vê como estamos bem no começo? […]
Que é preciso ser um iniciante […]
Contra a luz vez por outra, e com frequência com uma impenetrável escuridão atrás de si.”
(RILKE, 2011, p. 123).

Essa é [um]a imagem. Poderia ser tantas outras, mas é “uma grande melodia […] com muitas palavras e gestos confusos”. Trata-se aqui de expressar “uma hora compartilhada" (RILKE, 2011, p. 128). Portanto, escolho essa imagem de fundo e conto (imagem 1):

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Observo; por me faltar o nome, invento: Sr. B está sentado num banco de praça. Seus cabelos voam desalinhados quando tocados pelo vento. Seus olhos estão fechados. Faz frio. O dia começa a perder seu contorno e suas luzes. Alguns passantes se intrigam com aquele senhor ali parado, pensam que é um morador de rua que está dormindo na calmaria de seu mundo. Outros pensam que ele está meditando. Muitos não enxergam essa cena. Poucos olham um instante poético a ser fotografado. Mas Sr. B, apesar de tudo, está apenas sentado com os olhos fechados. Seus pensamentos navegam em melodias profundas. Não temos acesso ao que se passa. Vemos apenas o primeiro plano de uma imagem silenciosa: “sempre desperta por trás de você uma vasta melodia, tecida por mil vozes, na qual só aqui e ali há espaço para você fazer um solo. Saber quando é a sua vez – eis o segredo da solidão” (RILKE, 2011, p. 126). Ele permanece imóvel, como uma figura pintada em um quadro ou uma marionete que aguarda o show. Eu, que o observo há mais tempo, apenas vejo – ou penso ver – pequenos e suaves gestos de sua mão, como que puxados por um titereiro invisível. O corpo se movimenta, em um ritmo suave. Sr. B está de pé. Abre os olhos lentamente olhando o infinito. Ele tira de dentro de sua bolsa uma velha câmera analógica. Aponta para os lados – parece procurar um ponto luminoso. A lente aponta em minha direção. Surpreendo-me com esse movimento. Mas Sr. B parece não me ver. Eu vejo, num instante qualquer, o movimento da objetiva construindo o foco, o diafragma fechando, escuto a melodia do disparo do obturador e, no olho dentro do olho, enxergo o que ele vê: A luz escura [da noite].

_Luz Escura

“Quero indicar um exemplo sem importância. É noite.”
(RILKE, 2011, p. 129).

“Onde queres abrigá-la, se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?”
(RILKE, 2013, p. 13).

Escrevo. Sim, escrevo. Desta vez, depois mais uma, talvez. Escrevo, tendo como p[l]ano de fundo a obscuridade da noite. Escrevo me lembrando da cena vivida. Escrevo… Não! Rascunho palavras. Rascunho imagens apontando minha máquina fotográfica na tentativa de capturar o que não se vê. Deixo em suspensão o diafragma e o obturador no anseio de gravar, no negativo do filme, o que os olhos não enxergam: “é a noite que precede o dia das figuras conhecíveis” (BAVCAR, 1994, p. 461).

Lá fora, é noite. Por mais escura que seja, nem o desejo, nem o olhar, nem a imaginação cessam: “a obscuridade permanece um estado latente, a saber, a luz em potência de devir e de ser” (BAVCAR, 1994, p. 462). Aponto a lente para a escuridão, para captar a melodia invisível das coisas. Lembro-me das imagens de Bavcar, que “habita a noite como um farol que ilumina só o que está ao longe, conservando a obscuridade em seu entorno” (SOUSA, 2015, s.p.), e lembro-me de que o ponto de partida da imagem não é a luz, mas sim sua obscuridade.

A luz queima, na sua falta e na sua intensidade, o negativo do filme. Corto aquele pequeno fragmento disparado e revelo. Nada se vê na foto, mas, apesar de tudo, estilhaços saltam ao olhar (imagem 2). A imagem abre um “vazio que nos olha” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31), um borrão preto-alaranjado, imagem que quer [a]parecer, mas fracassa. Tento novamente. Outro filme. Dessa vez, preto e branco. Tento captar um corpo que passa. Recorto. Mergulho o fragmento de tempo no químico revelador, na água, no fixador, na água novamente.



A imagem tenta [a]parecer novamente. Apenas um gesto sobressai, um pedaço de corpo “breve demais”, um pedaço de cabeça que quer sair ao mundo – “no primeiro plano, somos bem assim” (RILKE, 2011, p. 126). Uma imagem-lacuna, que é vestígio e desaparecimento, “enquanto singularidades-lacunares, incapazes do todo” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 205-209). Lembro-me de Beckett:

Dizer um corpo. Onde nenhum. Nenhuma mente. Onde nenhuma. Isso pelo menos. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar nele. Mexer-se nele. Fora dele. De volta a ele. Não. Não fora. Não de volta. Somente nele. Ficar nele. Adiante nele. Parado. Tudo de outrora. Nada mais nunca. Nunca tentado. Nunca falhado. Não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar Melhor. (BECKETT, 2012, p. 65).

A “fotografia começa e tem seu retorno nas trevas, na obscuridade. Sua origem é as trevas e se abre para além do visível”. A luz, que poderá entrar pela objetiva, “não serve para revelar a escuridão” (COSTA, 2015, s.p.), mas para mostrar que há algo que nossos olhos não são capazes de ver, de capturar. Mantenho os olhos fixos: apenas o fundo escuro aparece (imagem 3).



Estendo a foto para terminar de secar. Saio do quarto escuro, improvisado em um banheiro. Lembro-me de Agamben (2009, p. 62-63) quando diz que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. O contemporâneo é uma noite que nos inquieta o olhar, assim com as obras de Malevich (“Quadrado Negro”) e Tony Smith (“The Black Box”) – “ela nos inquietou, em vez de nos fazer silenciosos e calmos” (RILKE, 2011, p. 125). Não é apenas uma simples ausência de luz, mas um produto da retina, do modo de olhar. Volto a me lembrar das imagens de Bavcar. Trata-se de uma obra-imagem que força a inquietar a visão, a inventar lugares para essa inquietude. São imagens-lacunas, ainda por vir.

A noite foi um dos elementos que deu possibilidade à criação dessas obras-imagens. A noite, penso, se torna o lugar da experiência, onde o desconhecido pode brotar, aparecer:

é quando fazemos a experiência da noite, na qual todos os objetos se retiram e perdem sua estabilidade visível, que a noite revela para nós a importância dos objetos e a essencial fragilidade deles, ou seja, sua vocação a se perderem para nós exatamente quando nos são os mais próximos (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 99).

Na noite mais escura, alguns pontos de visibilidade ainda são acessíveis. Na ausência, acontece um desdobramento de criação, de potencialização de vida. O volume de Tony Smith, o quadrado negro de Malevich, as imagens de Bavcar trazem o inquietante noturno. “Volumes dormentes, mas hostis”, são blocos de latência, pulsantes, e ao mesmo tempo vazios. Uma imagem que joga com o que nos olha e com o que vemos, uma imagem que se abre e que inquieta, em suma, que nos faz pensar. Uma imagem-ausência que fura, com sua luz ou com sua escuridão, o p[l]ano de fundo que compõe a cena. A luz escura brilha pela fresta da porta: percebo que deixei ela ligada novamente.

Suportar a obscuridade do instante

“A noite se aproxima e então caminham mais tranquilos …”
(Rilke, 2013, p. 89).

Desisto por um tempo, pois é necessário "suportar a vaziez”. “Eu aprendi que a vaziez é uma das qualidades mais desejáveis” para que “você atravesse e saia do outro lado” (SALOMÃO, 2005, p. 133). Para suportar a vaziez, precisamos “fazer uma suspensão voluntária da continuidade produtiva, exatamente para que possa vir o surpreendente, o inesperado, o que não está sendo pensado” (SALOMÃO, 2005, p. 133). Penso: é necessário suportar o ob[e]scuro.

Faz-se necessário também “suportar a obscuridade do instante vivido” (BLOCH, 2005, p. 23), como quando fracassamos, quando a luz queima o filme. Jogo-me no sofá, puxo os papéis de uma escrita em rascunho para perto. Ao longe, vejo a lombada escura de um livro, “Troche / Desenhos Invisíveis”. Lembro que é um livro comprado no Uruguai e nunca folheado. Estico a mão, pensando que a força está comigo e que o livro vai obedecer ao meu comando. Fracasso novamente. Enquanto atravesso a sala em direção a estante de livros uma pergunta me atravessa: fracasso enquanto uma noite que atravessamos ou estamos? Aproveito para pegar o dicionário e ver o significado de fracasso, esta palavra que me persegue nessa noite.

O termo-palavra-ideia-conceito “fracasso” é uma forma fracionada do verbo fracassar. “Fracassar” é produzir um fracasso; produzir um som estrepitoso; fazer em pedaços, de forma ruidosa; despedaçar, destruir, arrasar, não ter êxito, falhar, frustrar-se, malograr-se. “Fracasso”, por sua vez, é um som estrepitoso provocado pela queda ou quebra de algo, som de um corpo que cai, barulho, estrondo, ruído de uma coisa que se parte, ruína, desgraça. É falta de êxito, malogro, insucesso, derrota. Em geral, “fracasso” se refere ao estado ou condição de alguém que não atingiu um objetivo desejado ou pretendido. Usualmente, é visto como o oposto de “sucesso”, uma palavra usada como negativa ao positivo do ter sucesso. A etimologia da palavra “fracasso” vêm do italiano fracassare, que significa “destroçar”, “despedaçar”, “quebrar com estrépito”, “romper em pedaços”, “fazer grande ruído”. A palavra é formada por fra, que significa “entre”, “no meio”, e quassare, que significa “bater”, “golpear”.

Minhas mãos tateiam em busca de outro livro, a “Imagem Imperfeita”, de Jacoby. Leio para mim mesmo:

Ignorar o fracasso é errar em relação à história, como se nada de positivo ou humano dele resultasse. Ao contrário a vitória pode atestar muito mais uma configuração de força ou poder, do que de verdade ou validade. Isso pode parecer óbvio, mas vai de encontro a crenças e preconceitos profundamente assentados. Entretanto, as questões propostas pelo sucesso podem ser decisivas: o sucesso é bem-sucedido, mas por quanto tempo e às custas de quê? Estudar apenas os vencedores mundiais mantém o pensamento atrelado a uma realidade estreita. Das derrotas surgem ideias, pessoas transformadas e novos movimentos. Mesmo quando fracassam, as comunidades utópicas transformam as pessoas e as percepções (JACOBY, 2007, p. 29-30).

O fracasso, então, é um entre, algo que brota pelo meio, golpeando, provocando ruído, algo que pode fazer em pedaços, em estilhaços, o pensamento e a escrita. É um pensamento utópico, como as fotografias que não aparecem por completo, que deixam um rastro ainda de possível, que colocam em suspensão a própria imagem, que esburacam o p[l]ano de fundo para dizer que “aquilo que é importante continua sempre faltando” (BLOCH, 2005, p. 37), infiltrando-se nas lacunas, nos pequenos espaços – “no qual o menor tem o mesmo valor que o maior” (RILKE, 2011, p. 131), obras que sempre estão a nos movimentar na obscuridade do instante.

_Utopia como Fracasso

“A vocação da utopia é o fracasso […] a utopia mostra aquilo que não podemos imaginar. Só que não o faz pela imaginação concreta, mas sim por meio dos buracos no texto” (JAMENSON, 1997, p. 85).

Volto para o livro de Troche. Vejo o noturno em suas imagens carregadas de constelações, de pequenos pontos luminosos que me remetem ao modo como Bavcar fotografa na escuridão, desenhando na noite pequenos pontos de luz (imagem 4). Os desenhos parecem se unir "à noite como uma estratégia de resistência aos protocolos que nos indicam os caminhos” (SOUSA, 2015, s.p.). Vejo que “a iluminação excessiva faz desaparecer as linhas” de alguns contornos (SOUSA, 2015, s.p.) e, por vezes, as realçam, mostrando pequenos detalhes do que se esconde nesse p[l]ano de fundo (imagem 5).

Os desenhos invisíveis, a foto disparada pelo Sr. B, as imagens fracassadas pelo excesso ou falta de luz mostram apenas o p[l]ano de fundo da obscuridade. Os pequenos pontos luminosos, como vagalumes, revelam o que os olhos podem ver – a utopia como uma imagem, como lugar perdido, como vagalumes a dançar no escuro da noite, como as vozes de uma melodia do fracasso (imagem 6).

Olho para as rasuras de escrita com uma potência utópica, mostrando a “escrita como uma espécie de fracasso necessário deste percurso” (SOUSA, 2009, p. 399). Pego novamente a máquina fotográfica, preparo o próximo disparo para as possíveis capturas das melodias noturnas. Volto à escrita-rascunho-buraco no texto, tendo como noite os desenhos invisíveis de Troche e as fotografias de Bavcar, entendendo que a “função da utopia”, da imagem e da escrita, "é paradoxalmente seu fracasso. Ou seja, vale por aquilo que nos aponta do nosso em falta com a imaginação. Sua função seria justamente de apontar o que fica interrompido na construção da imagem” (SOUSA, 2009, p. 399).

“O que se encontra, então na escuridão profunda é um áspero desejo de ver” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 144-145).

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó/SC: Argos, 2009.

BAVCAR, Evgen. A luz e o cego. In: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 461-466.

______. Memórias do Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

______. Catálogo de Exposição. A Noite Minha cúmplice. Museu de Arte do Rio Grande do Sul Aldo Malagoli; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Curadoria: Elisa Tessler – Exposição de 23 de agosto a 30 de setembro de 2001.

BECKETT, Samuel. Companhia e outros textos. São Paulo: Globo, 2012.

BLOCH, Ernest. Princípio Esperança, v. 1. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005.

COSTA, Andre Oliveira da. Bavcar, a fotografia em seus avessos. CORREIO DA APPOA. Luz e Sombra em Bavcar, Porto Alegre: Associação Psicanalítica de Porto Alegre, nº 250, nov. 2015. Disponível em: http://www.appoa.com.br/correio/edicao/250/bavcar_a_fotografia_em_seus_avessos/268. Acesso em: 10 out. 2015.

DIDI-HUBERMAM, Georges. O que vemos, O que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

______. A Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

______. Imagens Apesar de Tudo. Lisboa: KKYM, 2012.

______. A Imagem Sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

JACOBY, Russell. A Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

JAMENSON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.

RILKE, Rainer Maria. A melodia das coisas. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

______. Elegias de Duíno. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.

SALOMÃO, Wally. Armarinho de Miudezas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

SOUSA, Edson Luiz Andre de. A noite em suas melodias de luz. CORREIO DA APPOA. Luz e Sombra em Bavcar, Porto Alegre: Associação Psicanalítica de Porto Alegre, nº 250, nov. 2015. Disponível em: http://www.appoa.com.br/correio/edicao/250/a_noite_em_suas_melodias_de_luz/265. Acesso em: 10 out. 2015.

______. Psicanálise e a vocação iconoclasta das utopias. Morus (UNICAMP), v. 6, 2009, p. 397-403.

TROCHE, Gervasio. Desenhos Invisíveis. São Paulo: Lote 42, 2014.

Capa (Imagens 4, 5 e 6) -  Troche, Desenhos Invisíveis, aquarelas, 2014.

Troche, Desenhos Invisíveis, aquarelas, 2014.

Elisandro Rodrigues, Imagem Fracasso, 2015, fotografia cor, Porto Alegre.

Elisandro Rodrigues, Imagem Fracasso 2, 2015, fotografia PB, Montevidéu.