O bem é desejado, ele é resultado de um ato, o mal é permanente. O deus escondido quando cria obedece à necessidade cruel da criação que se impõe a si mesma, e assim ele não pode deixar de criar, admitindo no centro do turbilhão voluntário do bem um núcleo de mal, cada vez mais reduzido, cada vez mais consumido.
Antonin Artaud

O urbanismo praticado hoje é antes de mais nada estético – embelezamento, jardinagem. É como construir bonitos castelos de areia, enquanto a casa está pegando fogo.
Le Corbusier

O homem de hoje gasta as suas energias inutilmente devido ao organismo doentio da cidade. A cidade cansa o homem, destruindo a sua energia vital.
Flávio de Carvalho


O IMPULSO Coletivo é um grupo de teatro que tem se dedicado em seus trabalhos a confrontar suas pesquisas de treinamento de ator com realidades de exclusão social, tendo como problematização principal os processos de formação de identidade e memória no contexto urbano. Como integrante e diretor do grupo, pensar o espaço urbano tornou-se para mim um desafio, compreender os vetores que erigem as cidades, os interesses que interferem no seu desenvolvimento e criar formas de materializar cenicamente esses processos é parte fundamental do trabalho do grupo. Essa escolha não se deu de forma totalmente consciente, mas partiu muito dos incômodos dos próprios integrantes como moradores de São Paulo, e tomou corpo ao longo da realização do projeto Desassossego – suas outras memórias que culminou com a criação da peça Cidade Submersa (2010).

Este eixo temático se firmou como elemento que caracteriza o trabalho do grupo com o atual projeto Metrópole Rei – Cidade Crua, que busca fazer uma livre adaptação do conto O traje novo do imperador de Hans Christian Andersen, se apropriando das metáforas presentes na fábula e contextualizando-a como um trabalho que contraponha os mecanismos de espetacularização do espaço urbano e os espaços negligenciados que esse processo gera. O local que abriga a atual criação do grupo é a Paróquia Nossa Senhora da Paz na Baixada do Glicério, que apesar de ser uma região localizada no centro da cidade, pode ser considerada uma área periferizada, fato que tratarei melhor posteriormente.

O primeiro projeto do grupo teve início no final de 2008 e deu-se na relação com os moradores da Vila Itororó. A Vila é uma construção da década de 1920, composta de várias casas e sua maior construção, o chamado “Castelinho do Bexiga”, foi em parte feita com vigas de trilhos de bondes e restos do Teatro São José, antigo teatro que pegou fogo no início do século passado, além de ser a antiga nascente do Rio Itororó que hoje corre canalizado embaixo da Avenida 23 de Maio. Em suma, a Vila Itororó já nasceu e permanece como símbolo pungente e concreto dos processos de urbanização da cidade de São Paulo, atravessando o apogeu econômico dos barões do café e o centro como um local de moradia e do lazer burguês, passando pelo crescimento desordenado da metrópole, a mudança da elite para bairros mais afastados, a desvalorização e marginalização da região central até chegar a sua recente valorização. A localização da Vila é hoje muito considerada por estar circundada de vias principais, a meio caminho entre a Praça da Sé e a Avenida Paulista, além da grande oferta de linhas de ônibus e da estação São Joaquim do metrô.

Em 2006, a Vila Itororó foi decretada pela prefeitura como espaço de utilidade pública, com a desculpa de transformá-la em centro cultural e gastronômico, o que deu início às ameaças de despejo aos moradores da Vila, fato que se concretizou no final de 2011 e início de 2013, descartando a história local e expondo a concepção de “cultura” do poder público1. Todo o processo se deu ignorando os moradores e suas histórias, famílias que em sua maioria moravam no local há mais de trinta anos. A luta e a resistência de parte dos moradores da Vila me impeliram a refletir e agir para compreender mais profundamente toda a conjuntura em que ela estava mergulhada, buscando descobrir meios de contribuir para a mobilização dos moradores e também para concretizar todas essas experiências em material cênico. Todo esse contexto implicou-me a compreender a Vila de maneira complexa, sendo atravessada por diversos fatores numa arena que misturava política, interesses econômicos, importância histórica e simbólica, moradia e discriminação.

Após a estreia de Cidade Submersa2 e apresentações em vários lugares, o atual projeto do grupo se deu como desdobramento desse primeiro. Ficou evidente que a transformação planejada pelo poder público para a Vila Itororó3 resultará como algo que podemos chamar de espetacularização da memória4. Assim, busquei compreender esse processo de espetacularização de uma forma mais ampla, envolvendo a produção da cidade tanto nos seus recantos mais idealizados quanto na sua contraposição que é a geração de espaços negligenciados, marginalizados e invisibilizados, e suas implicações nas relações com seus habitantes. Essas premissas e o fato de uma das atrizes do grupo ser professora no local levaram o grupo para região da Baixada do Glicério. A região carrega há muitos anos uma aura maldita, como descreve SEVCENKO:

Adjacente estava o cemitério dos supliciados e dos indigentes. Vieram depois o hospital, a Roda dos Enjeitados, o Asilo dos Alienados e o Asilo de Mendicidade. No início da Rua da Liberdade (antigo Caminho do Morro da Forca), ficavam a Cadeia Pública, a Casa de Correição e Trabalho e o pelourinho. Nos limites da Boa Morte se instalou o quartel da Milícia. (SEVCENKO, 2011, p. 24).

Mas o que mais me surpreendeu ao iniciar os estudos sobre o Glicério, é que boa parte dessas informações encontram-se de certa maneira alienadas de seu contexto histórico, tanto pelas transformações inevitáveis da sociedade quanto pela ação consequente de administrações públicas ligadas a interesses privados, como a ação no mínimo desrespeitosa de desativar e lotear para venda o cemitério público que ficava na região ou a troca de nomes do Largo da Forca para Praça da Liberdade.


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O bairro ainda guarda características que reforçam sua aura periférica, seja pela grande quantidade de cortiços em casarões antigos, os apartamentos voltados para pessoas de baixa renda, a presença evidente do tráfico de drogas e as várias cooperativas de catadores de material reciclável, além das vias elevadas, avenidas de grande fluxo e viadutos que circundam e recortam seu território. Ao aprofundar os estudos sobre o Glicério, deparei com a pesquisa de mestrado Preservação contraditória no centro de São Paulo, de André Luiz Canton, que fez ampla análise crítica sobre o contexto das vilas históricas localizadas no Glicério, trazendo à tona a Operação Urbana Centro. Abaixo destaco uma sequência de excertos de sua dissertação:

A Operação Urbana Centro, criada pela Lei no. 12.349 de 6 de junho de 1997, dispõe sobre uma área aproximada de 662,90 ha, “estendendo-se por todo os chamados ‘centro velho’ e ‘centro novo’, incorporando trechos do Glicério, Brás, Bexiga, Vila Buarque e Santa Efigênia” [...] Com os objetivos claramente definidos de “criar condições que reforcem a importância da área central para a metrópole de São Paulo, tornando-a atraente para investimentos imobiliários, turísticos e culturais e consolidando sua função de centro institucional” [...] (CANTON, 2007, p. 52-53).

Entendendo a Operação Urbana Centro como uma política que articula as ações do poder público e a iniciativa privada, mantemos a hipótese de congelamento da área do Glicério, na qual o setor de construção fortalece a situação de degradação, uma vez que espera o momento mais vantajoso para nelas investir. (CANTON, 2007, p. 40-41).

O termo “congelamento” nos pareceu bastante adequado para definirmos as condições de permanência da degradação, no caso da Baixada do Glicério. Enquanto a degradação se concretiza espacialmente, ao longo do tempo, pela falta de manutenção (investimentos) nas edificações consideradas, o congelamento agrava a situação de degradação. (CANTON, 2007, p. 8).

Estes territórios em situação de congelamento, ou segundo ROBIRA (2005, 10) “não capitalistas”, funcionam como “reservas” para resolver crises de “expansão/acumulação do próprio sistema territorial metropolitano”. Tais territórios são considerados como “adormecidos”, permanecendo temporariamente invalidados para a acumulação e serão alvo das “operações urbanísticas de ajuste do espaço urbano às necessidades do capital”. (CANTON, 2007, p. 46).

Em resumo, a região da Baixada do Glicério faz parte das ações planejadas dentro dessa lei, a Operação Urbana Centro, e o que fica evidente são os mecanismos de estado aliados a interesses da iniciativa privada que estão envolvidos na manutenção, e mesmo no aprofundamento, do estado de degradação da área com interesses de um posterior reinvestimento lucrativo. Voltar para observação do espaço urbano sabendo da existência de um planejamento em macro escala que tem efeitos reais sobre o território e, nos desdobramentos, sobre o modo de vida dos seus habitantes, foi de grande impacto na minha leitura crítica sobre a cidade. Essa compreensão foi se intensificando ainda mais ao longo do ano e meio em que tenho ido semanalmente à região para a realização dos ensaios do grupo. Para exemplificar, destaco dois prédios recém-construídos no local: a construção, em 2006, do prédio em terreno da Fundação Carlos Chagas, ocupado por gabinetes do Tribunal de Justiça de São Paulo, e um empreendimento imobiliário em construção na Rua do Glicério.

O primeiro é um grande prédio azul-espelhado, projetado pelo arquiteto Ruy Ohtake e localizado na parte superior da Rua Conde de Sarzedas, rua de entrada para o Glicério, e se encaixa perfeitamente na descrição de TEOBALDO (2010, p. 137-138) do que seria uma arquitetura pós-moderna nas pretensas cidades globalizadas: “[...] uniformizada através das torres de vidro, busca por meio da imagem e monumentalidade apresentar o poder das grandes empresas que geralmente estão presentes nas cidades globais, ou pelo menos nas que aspiram ser”. O que a autora designa como arquitetura cenográfica:

Entende-se por obra urbanística de caráter cenográfico aquela que, não conseguindo melhorar a qualidade de vida real de um bairro ou até mesmo de uma região, promove investimentos arquitetônicos onde a própria arquitetura é um palco para o cenário urbano e em sua forma está também sua função, ou seja, atrair o olhar e o lucro sobre a cidade (LIMA, 2004 apud TEOBALDO, 2010, p. 139).

Se não bastasse sua visualidade pretensamente a-histórica, estabelece ainda uma pitoresca e desconfortável solução com uma construção histórica no mesmo terreno, o Castelinho do Conde de Sarzedas. E nesse sentido, só posso concordar com BARDI (2009, p. 173) quando se posiciona sobre o movimento: “O quê? O pós-moderno internacional é a maior falência da arquitetura contemporânea.”.

O segundo é o empreendimento New Way da Brookfield Incorporações, ainda em construção, localizado no centro da Baixada na Rua do Glicério. Seu projeto de construção assimilou a ideologia dos grandes condomínios fechados da década de 1980 e 1990 e, numa escala mais compacta, concentra em sua área diversos serviços de lazer sob a ideologia da segurança e da exclusividade. Acredito ser importante ressaltar a informação que consta do sítio da Brookfield5 onde alega que seu maior acionista é a “Brookfield Asset Management, gestora global de mais de US$ 175 bilhões em ativos em 5 continentes, que mantém investimentos em diversos segmentos, além do imobiliário, onde estão investidos US$100 bilhões nos principais mercados”.

Sim, não pensávamos que as casas fossem assim frágeis, assim sutis, assim “humanas”, e que pudessem morrer assim. Foi então quando esperávamos naqueles momentos de pesadelo, que as casas começassem a ruir que nos apercebemos que elas “eram humanas”, que eram o “espelho” do homem, que eram o homem...

...Foi então, enquanto as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra do homem, que compreendemos que a casa deve ser para a “vida” do homem, deve servir, deve consolar; e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano[...]
Lina Bo Bardi

Assim, as duas experiências citadas deixam claro que essas intervenções urbanísticas na cidade de São Paulo têm objetivo de “segregar e mudar o caráter da vida pública, trazendo para seus espaços privados, construídos como espaços socialmente homogêneos (e portanto excludentes), as atividades que anteriormente tinham lugar em espaços públicos (heterogêneos e em princípio não-excludentes)” (CALDEIRA, 1997, p. 168), e desta maneira se caracterizando “por garantir que grupos sociais diferentes se encontrem o menos possível no espaço urbano, ou seja, que pertençam a espaços distintos e separados” (CALDEIRA, 1997, p. 169).

Aliar pesquisas de campo e teórica, e a observação sensível e crítica sobre o espaço urbano me trouxe uma noção que hoje me soa muito óbvia: as cidades são construídas. Uma dose de ingenuidade e ignorância me fazia tomar a cidade como um ente natural, quase como um fenômeno da natureza que seguia seu caminho espontaneamente ao sabor das sucessões temporais, um dado autônomo da realidade e com certa independência do desejo humano. O que antes parecia ter somente a perenidade através dos tempos, também mostrou sua face passageira e maleável como a vida. Pois, antes de tudo, as cidades são criações, são projeções e interferências prodigiosas do espírito humano sobre o ambiente.

Claro que nada é tão simplório assim ao nos depararmos com qualquer cidade construída, quanto mais com os monstros que são as grandes metrópoles, mas ter em mente a cidade como uma ficção materializada de acordo com certas ideologias, faz-me pensar sobre a necessidade de disputar essa produção. O dado mais importante nesta tomada de consciência é como nos dizeres do arquiteto e urbanista Alexandre Delijaicov no vídeo Entre Rios de FERRAZ (2009):

Felizmente de todas as obras de arte da humanidade, a cidade é a principal obra de arte, e felizmente é uma obra de arte aberta e inconclusa. Então a difícil arte de construção do espaço público, que é coletivo, passa por esse reconhecimento, por essa crítica e nós nos reinventarmos cotidianamente.

Considerando esse prisma e tendo em vista a situação caótica das maiores cidades do país, não resta dúvida que parte dos fatores que foram estopim das chamadas Jornadas de Junho de 2013, quando várias cidades foram tomadas por protestos em todo território nacional, têm como pano de fundo o direito à cidade. Esses protestos, puxados a princípio por manifestações contra o aumento da passagem de ônibus, metrô e trem, e inicialmente lideradas pelo Movimento Passe Livre6, tinham como palco a disputa pelo espaço urbano e público, pela sua livre fruição e circulação como direito de todos. A sequência explosiva de manifestações que se seguiram expôs grandes insatisfações de parte da sociedade brasileira que vive em grandes cidades, e assim os corpos em protesto recolocaram a rua como o espaço público de convergência, sociabilidade e contestação, retirando-a de sua “passiva” condição de passagem.

As grandes cidades do Brasil têm se configurado por um urbanismo rodoviarista e especulativo, gerando uma sociabilidade do medo e da competição que, tem consequência direta no imaginário subjetivo e na vida objetiva das pessoas, nas relações que estabelecemos com a cidade e com o outro. Sobre isso SEVCENKO (2011) e HARVEY (2013) apontam:

A consequência mais direta dessa proliferação aleatória de ações de construção, de apropriação dos espaços e da multiplicação de referências simbólicas alheias ao convívio coletivo, é a impossibilidade da consolidação de qualquer configuração de memória capaz de gerar algum sentido de identidade comum. (SEVCENKO, 2011, p. 30).

Nessas condições, os ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento se tornam muito mais difíceis de sustentar. (HARVEY, 2013).

Assim torna-se necessário restituir a todos os mecanismos de produção desses espaços coletivos, do ambiente em que vivemos juntos, numa estrutura organizacional democrática que instaure um outro paradigma de convivência e intervenção espacial. Em suma, o que está em discussão é o já citado direito à cidade, que HARVEY (2013) define como:

Saber que tipo de cidade queremos é uma questão que não pode ser dissociada de saber que tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos nós desejamos. O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. (HARVEY, 2013).

E é nesse sentido que o trabalho do IMPULSO Coletivo tem caminhado em compor peças que busquem materializar essa gigante teia de complexidades que estão em disputa pelos territórios urbanos e seus funcionamentos. Em termos de processo de construção de linguagem, o que o grupo busca numa criação é sintetizar uma experiência de pesquisa, é a concretização em ação cênica de um processo que se estende no tempo, coletando desde dados e informações locais até a apreensão de repertório gestual do universo temático. Partindo da materialidade poética do corpo, recriando e reorganizando o espaço e suas relações, o grupo intenciona aguçar os sentidos e a escuta do espectador ao compor quadros cênicos que desestabilizem as grandes narrativas hegemônicas. É um trabalho de perseguir formas (cenas, quadros, esquetes, partituras corporais, ações físicas, textos, diálogos, depoimentos, etc.) que estimulem tanto a sensibilidade quanto o espírito crítico do espectador, ao fazer chocar-se, confrontar-se ou justapor-se em cena pontos de vista e referências distintas. Desta forma, a dramaturgia cênica torna-se espaço para que o espectador confronte os fragmentos e reordene suas percepções de forma autônoma. Ao entrecruzar esses elementos cênicos, que sintetizam parte daqueles vetores temáticos (especulação imobiliária, gentrificação, valor histórico, memória, espetacularização urbana, mobilidade, moradia, etc.) são deixadas lacunas na dramaturgia da peça que convocam o espectador para percorrer e conectar os elementos cênicos de acordo com seu desejo, intuição, percepção ou repertório. Assim, o material apresentado propõe ao espectador uma reflexão aberta e coletiva, fazendo constantes perguntas que impliquem a todos os envolvidos na experiência cênica7.

A disputa no campo do imaginário é uma frente na qual o grupo se propõe a trabalhar e problematizar, descartando os mecanismos formatadores e alienantes do discurso hegemônico, mas buscando linguagens que estimulem o pensamento crítico e autônomo, num exercício de estímulo sensorial e intelectual. O trabalho parte de um posicionamento que busca gerar estruturas estéticas que intentem estabelecer relações de provocação com o espectador, instigando seu posicionamento crítico não só frente ao tema abordado, mas também sobre si mesmo em meio ao contexto e sobre a própria obra, defrontando-o com discursos hegemônicos e oficiais em atrito com perspectivas menos evidentes. A esse respeito, segue a proposição de BENJAMIN (2006):

Assim, é decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de, em primeiro lugar, levar outros produtores à produção e, em segundo lugar, pôr à sua disposição um aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais consumidores levar à produção, numa palavra, quanto melhor for capaz de transformar os leitores ou espectadores em colaboradores. Já possuímos o modelo desse gênero, mas só lhe posso fazer aqui uma breve referência: trata-se do teatro épico de Bertolt Brecht. (BENJAMIN 2006, p. 289).

Então, a tentativa seria agir nos trabalhos do IMPULSO Coletivo com intuito de estender essa compreensão da relação com o público para uma utopia onde o urbanismo também agisse como um equipamento de promoção e redimensionamento da vida dos seres humanos.

...O homem da cidade de hoje não aproveita a sua capacidade de produção, não pode aproveitar, porque o organismo burguês desorganizado tudo faz para aniquilar no homem o gosto pela vida, o entusiasmo de produzir coisas, o desejo de mudar...

...A cidade do homem nu será toda ela a casa do homem. O homem encontrará na sua casa imensa, as suas necessidades organizadas, arquivadas em locais apropriados, permitindo o acesso fácil e imediato. Ele não perderá energia inutilmente como o nosso homem de hoje. A sua fadiga será a mínima, o seu relacionamento espantoso surpreenderá a ele próprio, ele encontrará na sua vida uma nova felicidade, a felicidade da eficiência; um novo orgulho, o de ter conquistado a sua alma, o orgulho da compreensão da sua existência e do desejo de mudar sempre.
Flávio de Carvalho

O desafio é compreender como fazer uso desse urbanismo utópico para transformar as cidades. Como agir e por onde começar? Acredito que essa resistência nunca parou de acontecer, às vezes com mais intensidade outras vezes não, de maneira mais consciente ou não, e muito dos protestos que pipocam no país tem como pano de fundo a reivindicação de espaços para existir com dignidade. Movimentos de ocupação de espaços ociosos, seja como moradia ou como espaço cultural, tem se multiplicado. A gigante ocupação organizada pelo Movimento de Trabalhadores Sem-teto8 em terreno próximo ao estádio do Itaquerão é um exemplo disso, bem como a ocupação da Casa Amarela no centro de São Paulo por diversos artistas buscando espaço para construir ou mostrar seus trabalhos. Além da recente ocupação do Cais José Estelita em Recife, que vinha agregando milhares de pessoas para se apropriar de uma área histórica da cidade em vias de ser transformada em privilégio de poucos, e que foi violentamente desapropriada no dia 17 de junho, horas antes do jogo Brasil x México na Copa 2014.

As formas são muitas, e no IMPULSO Coletivo temos buscado ativar essa discussão por meio do campo simbólico nos trabalhos que realizamos. A memória, o território e o simbolismo das cidades e das pessoas têm sido reduzidos a valor de troca e relações de consumo, pasteurizando seus potenciais transformadores, e relegando a poucos o acesso a esses bens, patrimônios públicos que dizem respeito a todos nós. O que se torna fundamental é nos compreendermos como agentes ressignificantes da cidade, transformando seus usos e reivindicando a abertura de espaços de convivência. Apropriarmo-nos do latifúndio que é nosso imaginário e agir sobre o mundo construído com objetivo de estabelecer relações produtivas e criativas, que gerem um outro paradigma para a convivência humana nas cidades, onde os muros reais e imaginários cairão um a um, para se estabelecer uma sociabilidade de confiança e criação.

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1  Para mais informações sobre o caso da Vila Itororó: http://impulsocoletivo.wordpress.com/vila-itororo/

2  A peça estreou em maio de 2010 com temporada no Espaço Cultural Casa das Caldeiras. Mais informações sobre o processo de construção e interação com a Vila Itororó em: DONOSO, 2010; AZEVEDO, 2012; AZEVEDO e DONOSO, 2012; AZEVEDO e DONOSO, 2013.

3  Recente publicação oficial sobre o andamento do projeto: http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/2279?fb_action_ids=10152007938462126&fb_action_types=og.likes&fb_ref=.U3-jDC_JEMA.like#ad-image-0

4  “Apesar disso, justifica-se sempre a revitalização pelo mesmo discurso dos ‘planejadores’, em que estão presentes a recriação da vida social naquele espaço, que até então era considerada ausente, motivando as dinâmicas transformadoras e encobrindo, dessa forma, a verdadeira intenção de expulsar incômodas formas de habitar o espaço distantes do novo objetivo proposto para aquele local e ‘incompatíveis com a nova semântica dos espaços renovados’” (SÁNCHEZ,1999 apud TEOBALDO, 2010, p. 140).

5  Acesso para o sítio: http://br.brookfield.com/Brookfield/QuemSomos/SP

6  “O Movimento Passe Livre (MPL) é um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um transporte público de verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da iniciativa privada”. A definição consta no sítio do movimento: http://saopaulo.mpl.org.br/apresentacao/

7  Para uma análise mais pormenorizada de procedimentos cênicos sugiro acessar o sítio do grupo, onde se pode encontrar outros elementos (vídeos, fotos, artigos, reportagens, etc.) que auxiliarão o leitor numa visão mais concreta de nossas proposições teatrais: http://impulsocoletivo.wordpress.com/

8  O MTST é um movimento de trabalhadores organizados que vivem em situações precárias e lutam pela distribuição igualitária dos territórios urbanos. Sítio do movimento: http://www.mtst.org/

ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida: Antonin Artaud. Organizado por J. Guinsburg, Sílvia Fernandes Telesi e Antonio Mercado Neto. São Paulo: Perspectiva, 2006.
AZEVEDO, Jorge Peloso de. A cidade submersa que encontramos na Vila Itororó (inédito). Disponível em: http://impulsocoletivo.files.wordpress.com/2012/10/a-cidade-submersa-que-encontramos-na-vila-itororo.pdf
______; DONOSO, Marília Gabriela Amorim. Atitude: desdobramentos e confrontos do treinamento do ator no processo de criação do espetáculo Cidade Submersa. PesquisAtor, São Paulo, nº1, maio-out. 2012. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/pesquisator/article/view/36122
______; DONOSO, Marília Gabriela Amorim. Problematização e representação da memória no espetáculo Cidade Submersa. Revista CPC, São Paulo, nº16, maio/out. 2013, p. 180-190. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/68649/71227
BARDI, Lina Bo. Lina por escrito: Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. Organizado por Silvana Rubino e Marina Grinover; introdução Silvana Rubino. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: A modernidade. Obras escolhidas de Walter Benjamin, Edição e tradução de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.271- 293.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Tradução Heloísa Buarque de Almeida. Novos Estudos, CEBRAP, 1997, p. 155-176.
CANTON, André Luiz. Preservação contraditória no centro de São Paulo: degradação das vilas preservadas na Baixada do Glicério no contexto da renovação urbana (Operação Urbana Centro). Dissertação de mestrado. Departamento de Geografia – FFLCH/USP. 2007.
CARVALHO, Flávio de. A cidade do homem nu. 1930. Disponível em: http://urbania4.org/2012/03/03/a-cidade-do-homem-nu/ Acesso em: 19 fev. 2014.
DONOSO, Marília Gabriela Amorim. O treinamento como processo de investigação do ator-criador. Dissertação de Mestrado em Artes, Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista São Paulo, 2008-2010. Disponível em: http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/bia/33004013063P4/2010/donoso_mga_me_ia.pdf
HARVEY, David. O direito à cidade. Site da Revista Piauí, 2013. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-82/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-direito-a-cidade Acesso em: 27 de setembro de 2013.
LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura; posfácio Carlos A. Ferreira Martins. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
SEVCENKO, Nicolau. A cidade metástases e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. Revista USP, São Paulo, nº63, 2004, p. 16-35.
TEOBALDO, Izabela Naves Coelho. A cidade espetáculo: efeito da globalização. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, Volume XX, 2010, p. 137-148.

Material áudio visual:
FERRAZ, Caio Silva. Entre Rios. 2009. Disponível em: vimeo.com Acesso em: 1 jun. 2014.

1  Alícia Peres, Ensaio fotográfico com atrizes sobre o Rio Tamanduateí, 2013, fotografia.

2  Alícia Peres, Apresentação de Cidade Submersa na Vila Itororú, 2011, fotografia.